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Adeus, Mister: Justa Causa Desportiva?

O mundo desportivo é constantemente marcado por momentos de várias mudanças laborais. O aproximar do fim da época, para além de trazer o tão esperado mercado de verão, motiva ainda os clubes a realizarem outras alterações e upgrades internos, como por exemplo a nível das equipas técnicas, levando, muitas vezes, à substituição de treinadores principais numa tentativa de melhorar a prestação da equipa em face da época anterior.  

O regime do contrato de trabalho do treinador desportivo é um tema algo complexo e ainda muito debatido, como já fora abordado por nós em artigo anterior. Contudo, a existência de uma relação laboral entre o treinador e o clube-empregador parece ser um ponto cada vez mais assente, restando a clássica discussão de qual dos regimes laborais se afigura aplicável à dita relação: (i) se o regime geral constante do Código do Trabalho (CT) ou (ii) se o regime especial aplicado aos praticantes desportivos (Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, RJCTPD).

A relação laboral constituída com treinadores desportivos, demonstra bem o carácter pluralista do Direito do Trabalho e da multiplicidade de relações atípicas que “escapam” às malhas do CT. Não se pode olvidar que a atividade desempenhada pelos treinadores desportivos não se encaixa no perfil típico do trabalhador subordinado, uma vez que estes profissionais desempenham funções muito pouco dependentes, revestindo natureza predominantemente intelectual (preparação e orientação tática de atletas).

Ainda que contribua para a concretização da atividade desportiva, o treinador não intervém diretamente na exibição da performance da competição, pelo que diríamos que o praticante é aquele que é treinado e põe em prática as diretrizes técnicas. Esta função não caberia, pois, ao treinador.

Não obstante se vislumbrarem rasgos de autonomia na performance dos treinadores, não se pode olvidar que o treinador não deixa de ser um trabalhador subordinado por convénio individual de trabalho – (o Contrato Coletivo de Trabalho (CCT), celebrado entre a Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF) e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), objeto de Portaria de Extensão, que é atualmente o instrumento que supre a lacuna de previsão existente para esta categoria profissional) – integrado numa estrutura organizacional, sujeito aos poderes do empregador desportivo (v.g. aplicação de sanções disciplinares), verificando-se, contudo, um esbatimento dos traços de subordinação do trabalhador e do poder de direção do empregador nesta relação laboral.

Neste sentido, podemos descrever esta relação laboral, à semelhança da relação dos jogadores, como sendo tripartida: o empregador desportivo, o trabalhador e o público. O público, surge aqui quase como uma parte indireta, na medida em que não se encontra na relação profissional em si, mas cuja opinião e discernimento sobre a performance tem influência na decisão tomada pelo Clube, enquanto empregador de um treinador. Podendo, para alguns, configurar uma motivação externa, com bastante peso, que conduza à cessação do contrato de trabalho do treinador pela entidade empregadora desportiva.

Questiona-se, todavia, se essa motivação externa, que é a reação do público, normalmente decorrente de uma consequência desportiva aparentemente associada à prestação do treinador, como por exemplo a perda de um campeonato ou a descida de divisão, possa levar ao despedimento de um treinador.

Ora, aplicando-se ao treinador o regime especial do contrato de trabalho do praticante desportivo, verificamos que este concretiza, no seu art. 23.º, as várias formas de cessação do contrato, sendo que o seu n.º 4 introduz o conceito de justa causa desportiva, definida como a possibilidade de o praticante resolver o contrato em caso de não participação nas competições oficiais ao longo da época desportiva.

Surge então a questão de saber se esta justa causa desportiva poderá ou não ser utilizada pelo clube, enquanto empregador, para fundamentar um determinado despedimento, como por exemplo, de um treinador. Para tal, é necessário ter-se presente que o RJCTPD refere, no n.º 3 do seu art. 23.º, que constitui justa causa o incumprimento contratual grave e culposo, que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral desportiva.

Será legítimo enquadrar-se a perda de um campeonato, ou a descida de divisão de um Clube como um incumprimento contratual grave e culposo do treinador? Tornará tal facto, praticamente impossível a subsistência da relação laboral? Parece-nos claro que o público poderá ter aqui um papel fundamental no que tange a colocar em causa a relação de confiança exigida na manutenção de uma relação laboral desportiva entre o clube e o treinador, contudo, será esta suficiente para se considerar a existência de uma justa causa desportiva, de modo a fundamentar um despedimento?

Gonçalo Asper Caro | Marta Coelho Valente

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