Skip to main content
AI e TecnologiaBlog

Atualidade laboral: Regulação legal do uso da IA ao nível dos Recursos Humanos

By 11 Dezembro, 2024Dezembro 30th, 2024No Comments

Um artigo de Nuno Abranches Pinto, Partner da DCM | Littler, na RH Magazine.

A Inteligência Artificial (IA) tem vindo a surpreender pela forma como se julga poder ser útil em todas as áreas de atividade económica. Útil, mas também geradora de desconfianças e receios… Por parte do Direito, assiste-se ao que é habitual na relação entre esta área e as inovações tecnológicas de maior impacto: uma tentativa de criar um quadro regulatório suficientemente equilibrado e capaz, igualmente, de garantir o respeito por princípios fundamentais inerentes à proteção das pessoas sem, contudo, inibir o partido que se pode tirar da inovação.

O Direito não antecipa a inovação tecnológica, mas tenta não perder tempo no esforço de a enquadrar. No Direito do Trabalho segue-se a mesma regra. O impacto da IA na gestão de recursos humanos será (ou está já ser) muito significativo. Trata-se de uma tecnologia que pode proporcionar automatização de funções e a consequente substituição dos trabalhadores. Pode, por outro lado, contribuir para medir o desempenho dos trabalhadores no que se refere a comportamentos e produtividade.

Uma tecnologia que pode proporcionar automatização de funções e consequente substituição dos trabalhadores.

E pode proporcionar decisões automatizadas quanto à seleção de trabalhadores na fase de recrutamento ou na fase da reestruturação. Isto é, a nova tecnologia contribuirá muitíssimo para um funcionamento mais eficaz ou eficiente da organização, melhorando-a.

Mas pode, nesse processo, influenciar recrutamentos e proporcionar despedimentos, ou seja, tomar decisões (ou influenciá-las) que se repercutem diretamente na esfera dos trabalhadores, constituindo um foco de potencial lesão para a segurança do vínculo, para a sua privacidade, ou para a própria segurança e saúde no trabalho. Na gestão deste cruzamento entre oportunidades e riscos, o legislador deu já os primeiros passos para efeitos de enquadramento das novas ferramentas. Concretamente através de três diplomas essenciais.

Em primeiro lugar, a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital estabelece que “a utilização da IA deve ser orientada pelo respeito dos direitos fundamentais, garantindo um justo equilíbrio entre os princípios da explicabilidade, da segurança, da transparência e da responsabilidade, que atenda às circunstâncias de cada caso concreto e estabeleça processos destinados a evitar quaisquer preconceitos e formas de discriminação.” (art. 9.º, n.º 1), sendo as decisões de robots auditáveis. A Carta foi aprovada pela Lei n.º 27/2021, de 17 de maio.

O que se pretende é garantir a sindicabilidade das decisões resultantes de mecanismos que utilizem a IA – essas decisões não podem deixar de ser comunicadas e os seus fundamentos explicitados, independentemente da forma como a decisão é gerada.

Por outro lado, o legislador exige que a IA seja orientada para afastar decisões preconceituosas ou discriminatórias. A Carta não é uma norma explicitamente laboral, mas parece evidente que o art. 9.º é pertinente do ponto de vista de decisões tomadas em contexto laboral ou em contexto de gestão de recursos humanos.

O legislador exige que a IA seja orientada para afastar decisões preconceituosas ou discriminatórias.

Em segundo lugar, também o Código do Trabalho (CT) passou a contemplar referências explícitas à IA, concretamente a partir de maio de 2013 no contexto das alterações introduzidas pela designada “Agenda do Trabalho Digno” (Lei n.º 13/2023, de 3 de abril). A utilização de IA é uma das matérias que o legislador agora acautela de forma qualificada, estabelecendo que um instrumento de regulamentação coletiva não pode alterar a regulação legal sobre o tema, a não ser em sentido mais favorável ao trabalhador [art. 3.º, n.º 3, al. o) do CT].

De resto, o CT obriga o empregador a cumprir deveres de informação sempre que recorra a decisões automatizadas com recurso a algoritmos e IA de tal modo que o trabalhador não pode ser “vítima” dessas decisões sem que tenha plena noção disso mesmo. O dever de informação deve ser cumprido junto do trabalhador individualmente considerado, mas também junto de estruturas de representação coletiva (comissões de trabalhadores e delegados sindicais) (arts. 106.º, n.º 3, al. s), 424.º, n.º 1, al. j) e 466.º, n.º 1, al. d) do CT).

São, ainda, proibidas utilizações de IA que violem o princípio da igualdade no acesso a emprego e no trabalho, designadamente no que se refere a decisões sobre:

(i) critérios de seleção e condições de contratação;
(ii) acesso a todos os tipos de orientação, formação e reconversão profissionais de qualquer nível;
(iii) retribuição e outras prestações patrimoniais, promoção a todos os níveis hierárquicos e critérios para seleção de trabalhadores a despedir; e
(iv) filiação ou participação em estruturas de representação coletiva (art. 24.º, n.º 3 do CT).

O terceiro diploma de consideração obrigatória é o Regulamento (UE) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, que cria regras harmonizadas em matéria de IA. O Regulamento reforça as regras relativas a transparência que já vigoravam com base em outros diplomas, designadamente no que se refere ao direito à informação e à preocupação de garantir que a decisão automatizada não é discriminatória.

De forma mais assertiva, o Regulamento proíbe a utilização de sistemas de IA para inferir emoções dos trabalhadores no local de trabalho, exceto nos casos em que se destine a ser instalado ou introduzido no mercado por razões médicas ou de segurança [art. 5.º, n.º 1, al. f)], ou a utilização de sistemas de categorização biométrica que classifiquem individualmente trabalhadores, para deduzir ou inferir raça, opiniões políticas, filiação sindical, convicções religiosas ou filosóficas, vida sexual ou orientação sexual [art. 5.º, n.º 1, al. g)].

Por outra via, são classificados como sendo de risco elevado (e, nessa medida, sujeitos a requisitos especiais):

(i) sistemas de IA concebidos para serem utilizados no recrutamento ou na seleção de trabalhadores, nomeadamente para colocar anúncios de emprego direcionados, analisar e filtrar candidaturas a ofertas de emprego e avaliar os candidatos; e
(ii) sistemas de IA concebidos para serem utilizados na tomada de decisões que afetem os termos das relações de trabalho, a promoção, ou a cessação das relações contratuais de trabalho, na atribuição de tarefas com base em comportamentos individuais, traços ou características pessoais, ou no controlo e avaliação do desempenho e da conduta de pessoas que são partes nessas relações.

Destaque, ainda, para obrigações específicas em matéria de formação e literacia. De acordo com o previsto no art. 4.º do Regulamento, os empregadores que adotem sistemas de IA são responsáveis por garantir que os trabalhadores envolvidos na operação e utilização desses sistemas dispõem de um nível suficiente de conhecimento sobre o tema.