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“Cãotrato” de Trabalho?

By 7 Novembro, 2023No Comments

Na relação existente entre uma parte que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a qualificação substantiva dessa relação jurídica pode ser especialmente desafiante quando os sujeitos laborais se revelam algo incomuns.

Boris é um cão que, desde 04.09.2023, celebrou com uma entidade pública, um vínculo contratual por tempo indeterminado, no qual se pode ler, vigorará pelo tempo de vida do segundo outorgante (Boris), em que este contraente se vincula a guardar e zelar pelos bens da junta, dar amor e carinho a todos os funcionários e seus fregueses e por essa mesma prestação auferirá assistência veterinária, alimentação, diversão, amor e carinho.

A relação dita “contratual” entre animais e instituições não é novidade, recordemos, a título de exemplo, o caso da famosa Águia Vitoria com um conceituado clube de futebol português.

Mas poderão estes vínculos ser denominados contratos de trabalho ou prestações de serviço?

Vejamos o que nos diz o nosso quadro legal:

Tanto o art. 1152.º do Código Civil (CC) como o art. 11.º do Código do Trabalho (CT), estabelecem um elemento de pessoalidade ligado ao contrato de trabalho, ou seja, para que se possa designar um determinado vínculo contratual como de trabalho é necessário que uma das partes seja uma pessoa singular que se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras, no âmbito de organização e sob autoridade destas. Ora, a noção aponta desde logo para um carácter de pessoalidade que é necessário à caracterização do vínculo.

No mesmo sentido parece apontar a noção de prestação de serviços que nos é dada pelo art. 1154.º do CC. Nos termos deste normativo, o contrato de prestação de serviços é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

Embora nesta definição de contrato de prestação de serviços não se aponte, expressamente, para o elemento pessoa, da leitura conjugada entre os preceitos parece resultar que tanto numa modalidade como noutra deverá existir um elemento de pessoalidade, até pelo tipo de atividade que está associada – atividade intelectual ou manual.

Atualmente, os animais figuram numa nova dimensão jurídica no nosso ordenamento, contendo um novo estatuto, previsto no artigo 201.º-B do CC: se, por um lado, se reconhece a sua natureza de seres vivos dotados de sensibilidade, afastando-os das coisas, por outro lado, não foi desiderato do legislador atribuir-lhes personalidade jurídica.

É certo que os animais deixaram de ser coisas, mas também não passaram a ser pessoas. Estamos, assim, diante da criação de uma realidade nova no nosso sistema jurídico, um tertium genus, que veio situar os animais num patamar intermédio entre coisas e pessoas, trazendo claros constrangimentos ao aplicador do Direito que tem assim a delicada tarefa de densificar e preencher esta nova realidade.

Sem prejuízo da bondade que lhes subjaz, este tipo de vínculos com animais, ainda que se vislumbre a existência de uma qualquer prestação por parte do animal, estando este inserido na organização da pessoa coletiva que dirige a sua atuação e lhe fornece a contraprestação, à luz do nosso sistema jurídico vigente, não se pode classificar como contrato de trabalho nem prestação de serviços devido à impossibilidade e à necessidade de um dos sujeitos laborais ser uma pessoa.

Muitos são os desafios diários que se colocam aos aplicadores do Direito, não ficando o universo laboral fora da mira.

Gonçalo Asper Caro @ DCM | Littler