No passado dia 31 de março foi publicada a Lei n.º 33/2025, que visa promover os direitos na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério. Apesar de ter entrado em vigor a 1 de abril, os seus efeitos só se produzirão após a entrada em vigor do próximo Orçamento do Estado.
Este diploma representa um marco legislativo relevante, ao consagrar pela primeira vez o conceito de violência obstétrica no ordenamento jurídico português, e ao estabelecer novas obrigações para profissionais e instituições de saúde. Insere-se numa tendência mais ampla de promoção da humanização dos cuidados de saúde materna, procurando garantir maior informação, transparência e responsabilização.
Quanto às principais alterações, serão de reter:
- A obrigatoriedade do estudo do tema nas aulas de educação sexual e na formação em saúde;
- A criação da Comissão Multidisciplinar para os Direitos na Gravidez e no Parto;
- A afixação visível nos estabelecimentos de saúde de cartazes com informação sobre direitos na gravidez e no parto, incluindo orientações sobre como denunciar situações de violência obstétrica;
- O registo e justificação obrigatórios por parte dos profissionais de saúde de todos e quaisquer desvios ao plano de parto (agora “plano de nascimento”);
- O registo e justificação no processo clínico de qualquer intervenção médica ou de enfermagem no parto;
- A justificação da realização de episiotomias de rotina e de outras práticas reiteradas sob pena de penalização no financiamento e sanções pecuniárias a aplicar aos hospitais, bem como de inquérito disciplinar aos profissionais de saúde.
Vejamos, com maior acuidade, as medidas com relevância laboral.
Conceito de “violência obstétrica”
A violência obstétrica é definida enquanto: a ação física e verbal exercida pelos profissionais de saúde sobre o corpo e os procedimentos na área reprodutiva das mulheres ou de outras pessoas gestantes, que se expressa num tratamento desumanizado, num abuso da medicalização ou na patologização dos processos naturais, desrespeitando o regime previsto na Lei n.º 15/2014 de 21 de março.
Esta definição marca um avanço em termos de reconhecimento jurídico desta realidade. No entanto, a sua formulação genérica levanta desafios de interpretação, nomeadamente quanto à fronteira entre práticas abusivas e intervenções clínicas fundamentadas. A clarificação destes limites será essencial na fase de regulamentação, de modo a assegurar segurança jurídica e clínica tanto para as utentes como para os profissionais.
Registo clínico: mais transparência, novas exigências
O artigo 7.º determina que todos os atos médicos ou de enfermagem realizados durante o parto devem ser registados e justificados, em conformidade com as orientações da Direção-Geral da Saúde (DGS).
Esta medida visa promover a rastreabilidade e a prestação de contas nas decisões clínicas. Embora o registo clínico seja uma prática necessária e rotineira, a extensão desta obrigação poderá implicar adaptações organizativas – especialmente em contextos clínicos de elevada pressão como o bloco de partos – que merecem atenção na fase de regulamentação para não comprometer a atenção centrada na utente e não obstarem ao regular funcionamento da prática médica em contexto de urgência, p.e.
Episiotomia de rotina e sanções associadas
Do artigo 8.º decorre, por sua vez, a obrigatoriedade de abertura de inquérito disciplinar aos profissionais de saúde que realizem episiotomias de rotina ou outras práticas reiteradas cuja justificação não conste de registo de atos médicos ou de enfermagem que sejam realizados durante o parto.
É fundamental esclarecer que a episiotomia de rotina – feita de forma sistemática e sem critério clínico – não é defendida por nenhuma entidade científica. No entanto, a formulação do artigo deixa em aberto o que se entende por “rotina”, sem contemplar as nuances das decisões clínicas em situações concretas. O receio é que se penalize o julgamento técnico do profissional mesmo quando este atua com base na evidência, em diálogo com a mulher e em conformidade com a ética profissional.
Neste ponto, é essencial lembrar que o Código Deontológico da ordem dos médicos e dos enfermeiros já impõe o dever de prestação de cuidados de saúde baseados na melhor evidência científica, no respeito pela dignidade humana e na defesa da autonomia das mulheres. A imposição de procedimentos disciplinares baseados em critérios vagos, sem articulação clara com as ordens profissionais, pode criar um clima de intimidação e desvalorização das equipas de saúde, em vez de promover uma verdadeira cultura de humanização.
Papel dos profissionais e importância da regulamentação
A Lei n.º 33/2025, de 31 de março, representa uma oportunidade para consolidar uma abordagem mais humanizada nos cuidados de saúde materna, centrada na escuta ativa e no respeito pela autonomia das grávidas.
O sucesso da implementação dependerá largamente da qualidade da regulamentação que vier a ser aprovada, estando atualmente a decorrer o prazo legal de 60 dias para esse efeito. Será fundamental que este processo envolva de forma efetiva as ordens profissionais, as sociedades científicas e as associações de utentes, garantindo a articulação entre os direitos das pessoas grávidas, a qualidade da prática clínica e as condições de trabalho dos profissionais de saúde.
Nuno Abranches Pinto | Rute Gonçalves Janeiro | Maria Beatriz Silva