No dia 27 de agosto, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) pronunciou-se sobre o caso que opôs um médico austríaco e a República da Áustria, na sequência de um processo disciplinar a que o primeiro tinha sido sujeito pela redação do artigo Impfen no blogue Gansheitsmedizin, onde discorreu sobre a ineficácia das vacinas.
Quando a liberdade de expressão é limitada
Com efeito, a Ordem dos Médicos Austríaca considerou que as declarações visadas configuravam uma infração disciplinar, nomeadamente por violação do dever previsto no art. 53.º, n.º 1, da Lei dos Profissionais Médicos (Ärztegesetz) – o médico deve abster-se de prestar, no âmbito do exercício da sua profissão, informações que não sejam objetivas, sejam falsas ou prejudiquem a sua reputação profissional – tendo condenado o médico numa coima de 2000,00€ e no pagamento de 1500,00€ pelas despesas do processo disciplinar.
Por seu turno, por considerar que tal ingerência constituiu uma violação do direito à liberdade de expressão, previsto no art. 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), e após esgotados os meios judiciais internos que confirmaram a decisão da Ordem, o médico apresentou uma queixa junto do TEDH.
Ora, para que se pudesse concluir pela violação do direito à liberdade de expressão, teria de se verificar se a medida controvertida:
- constituiu uma ingerência no exercício da liberdade de expressão, sob a forma de uma formalidade, condição, restrição ou sanção;
- foi prevista por lei;
- prosseguiu algum dos objetivos legítimos enumerados no art. 10.º, n.º 2, da CEDH;
- era necessária numa sociedade democrática para alcançar esse(s) objetivo(s).
Olhemos, em traços gerais, para a decisão deste órgão jurisdicional:
No que concerne ao ponto (i) era pacífico entre as partes que se verificou uma ingerência no direito à liberdade de expressão do médico, não tendo o Tribunal visto qualquer razão para discordar de que a sanção disciplinar imposta ao médico pelas declarações realizadas no seu site constituía uma ingerência no seu direito à liberdade de expressão. Entendeu também o TEDH que, relativamente ao ponto (ii), a ingerência foi prevista por lei, porquanto as disposições internas eram suficientemente precisas.
Quanto à (iii) legitimidade do objetivo prosseguido pela ingerência, o TEDH destacou que, tal como estabelecido pelos órgãos jurisdicionais nacionais, em causa estava a proteção da saúde, sendo do interesse do público em geral e da classe médica em particular guiar-se por considerações objetivas quando se recorre a serviços médicos. Entendeu, portanto, que a proteção da saúde configura um objetivo legítimo de restrição da liberdade de expressão (como, aliás, já havia pugnado em decisões pretéritas, também mencionadas no presente, e.g. Hertel c. Suíça e Halet c. Luxemburgo).
Debruçou-se, por fim, (iv) sobre a questão da proporcionalidade da ingerência e a questão de saber se foram apresentadas razões pertinentes e suficientes para a justificar, examinando minuciosamente a natureza e o conteúdo das declarações controvertidas, o seu impacto e audiência, concluindo com a apreciação da sanção imposta ao médico.
Do juízo encetado pelo TEDH, resultou que não houve violação do artigo 10.º da CEDH, nomeadamente porque os órgãos jurisdicionais nacionais apresentaram razões pertinentes e suficientes para estabelecer um justo equilíbrio entre os interesses concorrentes do público e a liberdade de expressão do médico. Ademais, a sanção disciplinar imposta ao médico por fazer declarações cientificamente insustentáveis sobre a ineficácia das vacinas no seu site e, portanto, em conexão com a sua prática médica, não excedeu a margem de apreciação para que a medida impugnada pudesse ser considerada “necessária numa sociedade democrática” ao abrigo do artigo 10.º, n.º 2, da CEDH.
Atendendo ao exposto, cabe referir que o presente caso é representativo de que o direito à liberdade de expressão não é absoluto, podendo ser limitado e ter repercussões em diversas esferas da vida, nomeadamente na laboral.
O paradigma português
Em Portugal, a difusão de um conjunto de informações em contradição com a evidência médica implicou a instauração de vários processos disciplinares pela Ordem dos Médicos, que culminaram na aplicação de sanções, como se verificou em vários casos durante a pandemia de COVID-19.
Do presente decorrem um conjunto de questões, extensíveis às demais áreas profissionais que não estão sob a jurisdição disciplinar de uma ordem profissional, como, por exemplo, a questão de saber:
- a divulgação de opiniões pessoais tem relevância/impacto no âmbito de uma relação laboral de que o trabalhador seja parte? Se sim, qual?
- quais os meios de atuação, e bem assim, medida de uma tal atuação, na disponibilidade da entidade empregadora?
- no limite, poderia a entidade empregadora instaurar procedimento disciplinar com vista ao despedimento com justa causa fundado numa conduta extralaboral?
Compete-nos dedicar alguma atenção aos futuros desenvolvimentos.
Rute Gonçalves Janeiro, Maria Beatriz Silva @ DCM | Littler