Como se lia na súmula de um acórdão de 2018 (STJ 07/04/2018 – Pº 1272/16.4T8SNT.L1.S1, relator Chambel Mourisco): “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes.”
Essa jurisprudência foi iniciada com um acórdão de 2007 (STJ 02/05/2007 – Pº 06S4368, relator Pinto Hespanhol), relativo à novidade que constituía a presunção da existência de contrato de trabalho (ou de laboralidade, como também foi designada, um pouco à espanhola) estabelecida pela primeira versão do Código do Trabalho (2003), e foi alimentada por um grande número de decisões no mesmo sentido. Essas decisões, recusando a aplicação da presunção legal às relações de trabalho iniciadas antes da lei que a consagrava, em cada das sucessivas versões que foi assumindo, levaram a que, durante muitos anos, o ónus de provar os factos demonstrativos da qualificação contratual se mantivesse a cargo do trabalhador, ao abrigo do art. 342º do Código Civil.
Esta “jurisprudência consolidada” – que sem dúvida o era – confrontou-se, no entanto, com a discordância da doutrina maioritária, que criticava os próprios pressupostos teóricos das decisões em causa, evidenciando, além do mais, que da referida orientação dos tribunais decorria a frustração da politica legislativa de combate à fraude laboral.
Surge agora um acórdão sobre a matéria, em sentido divergente da jurisprudência que se supunha consolidada.
Trata-se do acórdão STJ 15/05/2025 – Pº 1980/23.3T8CTB.C2.S1, relator Mário Belo Morgado, cuja súmula diz o seguinte: “Relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do Código do Trabalho, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023)”.
Parece que a interpretação correcta deste aresto é a seguinte: a presunção do art. 12º-A do Código do Trabalho, que visa o trabalho prestado com suporte em plataformas digitais, aplica-se às relações iniciadas antes da lei que a criou (em 2023), se as características utilizadas para a fundamentar ocorrerem na actualidade, isto é, no momento em que se trata de qualificar a relação”.
Se esta leitura é correcta, há forte inflexão na posição do Supremo, e poderá perguntar-se se ela irá estender-se à presunção geral de laboralidade, consagrada no art. 12º do Código.
Os próximos acórdãos sobre a matéria serão aguardados com natural expectativa.
António Monteiro Fernandes