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Acidente de trabalho com origem exclusiva na doença (genética)?

By 29 Julho, 2024No Comments

Em artigo anterior, abordamos a problemática da (in)admissibilidade do acesso à informação genética do candidato ao emprego, por parte da futura entidade patronal.

Não obstante o amplo espaço de juridicidade e complexidade prática que a questão convoca, conseguimos destacar, em traços muito gerais, quais os interesses que poderão motivar a entidade empregadora a aceder a essa peculiar informação.

Neste enlace, no pretérito dia 19 de abril de 2024 foi proferido acórdão, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com o seguinte sumário:

I – Para que estejamos perante a ocorrência de um acidente de trabalho impõe-se que exista: uma relação laboral, um evento em sentido naturalístico, uma lesão, a morte ou redução da capacidade de ganho ou de trabalho e um nexo de causalidade entre o evento e a lesão e entre a lesão e a morte ou incapacidade (artigo 8.º da LAT).

II – Conforme resulta do artigo 10.º da LAT, a lesão constatada no local e no tempo de trabalho presume-se consequência de acidente de trabalho, ou seja, por força desta presunção, o sinistrado está dispensado da prova do nexo de causalidade entre o evento (acidente) e as lesões, no entanto, a mesma “já não o liberta do ónus de provar a verificação do próprio evento” e da lesão.

III – Tendo resultado provado que em resultado do esforço físico despendido nas tarefas preparatórias, o sinistrado sentiu-se mal, sendo que, quando os referidos colegas de equipa chegaram ao local o mesmo encontrava-se agarrado a um pilar de betão, junto do portão e a cair para trás, já não conseguia falar, apenas tendo demonstrado que sentia dor e entrado em paragem cardiorrespiratória, vindo a falecer, estamos perante um evento anormal, súbito e imprevisto que provocou a morte do trabalhador e porque ocorreu no tempo e local de trabalho e por causa deste, é um acidente de trabalho.

IV – A ilisão da presunção a que alude o artigo 10.º, n.º 1, da LAT, exigia a prova do contrário, ou seja, de que a morte súbita do sinistrado tivesse tido origem exclusiva na doença natural de que o mesmo era portador.

Desta decisão resulta que perante um acidente de trabalho, à entidade empregadora caberá o ónus de ilidir a presunção do nexo de causalidade entre o acidente e a situação clínica/lesão do sinistrado, i. e. provar que a lesão, neste caso, a morte do trabalhador, tem origem exclusiva em doença natural daquele, sob pena de ser responsável pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho.

Ora, não obstante a aparente desconexão entre a situação sub judice e a informação genética, não deixa, contudo, de ser interessante dar nota deste ónus da entidade empregadora.

De facto, daqui decorre que, mesmo na hipótese de para a paragem cardiorrespiratória e, consequentemente, a morte, ter contribuído uma doença genética do trabalhador, à entidade empregadora caberia, igualmente, a tarefa hercúlea de provar que o acidente se deveu exclusivamente a doença natural do mesmo, ou seja, que o evento integrava uma situação de “morte natural”.

Na decisão em apreço são trazidas à colação outras decisões superiores, de entre as quais destacamos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de junho de 2011, onde se pode ler:

Configura-se como acidente de trabalho, ao abrigo do art.º 6 da Lei n.º 100/97, a morte súbita do atleta C…, por se ter apurado que foi precipitada pelo esforço físico (causa exógena) que a sua actividade enquanto futebolista profissional lhe exigiu, esforço que lhe potenciou uma arritmia cardíaca, lesão que lhe causou a morte. II- E, ainda que aquela arritmia possa ter sido consequência de uma cardiomiopatia hipertrófica, considerada uma doença genética apenas detectada ao sinistrado post mortem, resultou provado que o esforço físico despendido pelo sinistrado na sua actividade profissional, ao serviço da 2ª ré, B…, foi determinante na lesão que lhe provocou a morte, ou seja, a relação de trabalho foi determinante no resultado verificado – a morte do sinistrado – que merece a protecção do regime jurídico dos acidentes de trabalho.

Do exposto, em particular do ónus referido, resulta, desde logo, o reforço do elenco de motivações  da  entidade empregadora indicadas artigo anterior, no que ao acesso à informação genética (e de saúde) do candidato ao emprego diz respeito.

Ademais, levanta-nos uma série de questões, das quais destacamos: i) até onde será possível, em sede de acidente de trabalho, tendo-se ou não verificado a morte do sinistrado, aceder à informação genética daquele? ii) como é que se compatibiliza o acesso a essa informação com o direito a não-saber – previsto no artigo 10.º,  n.º 2,  da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, e que configura dimensão do princípio da autonomia da pessoa humana – o direito à reserva da vida privada, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, a integridade e autodeterminação do sujeito, ou, nas palavras de João Carlos Loureiro, a “autodeterminação gene-informacional”? iii) como é que se compatibiliza o acesso à informação com os mesmos direitos dos elementos da família (que a maioria das vezes, em caso de morte, configuram como parte no processo judicial) e que podem  tomar conhecimento de que aquele acidente foi despoletado por uma doença genética da qual poderão ser também portadores? iv) como é que, perante a tomada de conhecimento destes dados genéticos, a sobrevivência do trabalhador e a manutenção do vínculo laboral, é garantido àquele que o empregador não utilizará a informação genética do mesmo na ponderação da gestão dos recursos humanos, por exemplo, para fins de promoção ou resolução do contrato?

A densidade das questões merecem um tratamento que só por si justificam outros trabalhos e outros ramos das ciências jurídicas.

Sobre o desenvolvimento deste e outros temas permaneceremos atentos.

Rute Gonçalves Janeiro @ DCM | Littler